sábado, 31 de outubro de 2009

A vingança da História "por fora"


Tarantino foi qualificado como um “inovador” por parte da crítica de Bastardos Inglórios: enquanto a maior parte dos filmes sobre a segunda guerra ainda abordariam o tema muito presos a fáceis “clichês”, o recorte e a trama construídos pelo diretor teriam inovado e permitido apreender outros aspectos do evento, como o “troco” sanguinário judeu e a impossibilidade de identificar “bons” e “maus” no contexto da guerra. Mais que isso: parte da crítica louvou exatamente a liberdade com que o diretor tratou a história, dissolvendo toda a tensão do conflito num potente “olho por olho, dente por dente”, para além de qualquer discussão ética envolvendo o contexto da guerra. Estendendo um pouco mais a parte ingenuamente simplista desse argumento, Arnaldo Bloch reforça que, ao contrário de filmes “facistóides que escondem maniqueísmos em pretensos hiper-realismos”, Tarantino teria mostrado que, em meio ao “colapso de destruição [da guerra], não há ideologia que sobreviva: só a sede [violenta] de reparação imediata, quase simultânea”.
É importante notar que esses pontos estão presentes nos próprios comentários que o diretor fez sobre o filme. Para além de qualquer revisionismo explícito do episódio da guerra, Tarantino afirma que buscou fazer somente uma “obra de arte”, e que o longa, ao contrário da pretensão de alguns, deveria ser interpretado somente enquanto tal. Aqui chama a atenção exatamente para o seu objetivo com o cinema: transformar linguagens estéticas mais diversas e organizar novas referências e tramas; enfim, usar e abusar da busca constante pela “inovação” cinematográfica – o que inclusive lhe rendeu a crítica de ser uma eterna criança fascinada com seus brinquedos. É nesse sentido que repete, mais uma vez, agora em Bastardos Inglórios, que seus filmes não são para ser vistos por um “qualquer público”, mas por quem saiba apreciar a sua “arte”.
Para alguns, por mais que o diretor não vise diretamente esta finalidade, a “eterna criança” cresceu com Bastardos Inglórios – principalmente ao escapar das imputações maniqueístas que ainda marcariam o tema da segunda guerra mundial, colaborando para, enfim, construir uma nova visão da guerra. O que fica patente para mim é que, nesta “obra de arte”, a explosão do conflito generalizado e as conseqüências mais impensadas e dramáticas projetadas na vida das pessoas durante uma guerra, dão lugar à disputa particular entre os personagens caricaturais de judeus e alemães. Longe de organizar uma trama complexa e problemática naquele contexto de guerra, Tarantino revela apenas caricaturas elevando ao máximo as suas obsessões e perseguindo até o fim o desenvolvimento de suas ações (o americano caipira e bruto, a francesa blasé, o inglês supereducado, os nazistas engomadinhos). Aqui estamos muito distante da idéia clássica que fazemos da segunda guerra: a guerra não corrói certezas nem força os atores sociais a buscarem uma resposta em meio à destruição. Ao invés de uma disputa ideológica antagônica temos um quadro no qual as ações individuais dos personagens, mesmo que envolvidos na problemática da guerra, correm paralelamente a qualquer possibilidade de ação coletiva na conjuntura. Mas este quadro não se expressa como a visão da guerra explícita do diretor, como alguns críticos quiseram ver: ele é traçado unicamente como "imagem", à maneira pós-moderna, bem à la Tarantino. Uns acreditam que foi justamente esse aspecto que incomodou os “moralistas”, por destruir qualquer possibilidade de existência de uma ética ideológica da segunda guerra. Ao contrário, penso que a construção da trama e a própria ação caricatural dos personagens contribui para que, ao invés de identificarmos a complexidade da guerra e constarmos a falência de uma interpretação ideológica que passe por cima de tudo a fim de afirmar determinada legitimidade, organizemos um distanciamento forte em relação a toda a problemática do evento.
Por isso, se Tarantino insiste em afirmar somente a sua intenção “artística”, o filme não deixa de suscitar questões e dialogar com o enquadramento da memória do período. Voltar ao contexto da segunda guerra pode ser uma escolha, acima de tudo, “estética”, nos termos do diretor, mas ela também não deixa de mobilizar e dialogar com as fortes referências culturais que possuímos do conflito. Tarantino insiste que seus personagens são “seres humanos” inventados que não podem ser encaixados em modelos de “bom” ou “mau”, mas a forma como ele constrói a trajetória deles não dimensiona um envolvimento mais “real” na própria problemática da guerra. A guerra existe apenas como um grande pano de fundo: os personagens atuam e podem mesmo mudar o seu curso (como de fato acontece no filme), mas eles não o fazem pelas razões que estiveram presentes na deflagração do conflito: mostra-se um Hitler obsessivo e completamente inseguro que busca na expansão alemã o remédio de seus problemas emocionais; um oficial da SS que aproveita o contexto da guerra para ascender na burocracia nazista; um norte-americano descendente indígena que se aproveita da guerra para por à prova a sua brutalidade interiorana; um soldado nazista que procura ganhar a simpatia do regime; enfim, uma judia que busca vingar a morte de toda a sua família. Como falei, acredito que tanto a construção da trama quanto a ação caricatural dos personagens contribuem de forma fundamental para o esvaziamento de uma discussão mais densa sobre o tema. Tarantino afasta-se completamente do “real” da segunda guerra, para em meio a ele, construir a sua trama “por fora” – e mesmo nos mostrar que esta poderia guardar um final surpreendente. Como avisou em uma entrevista, essa é a “vingança da história”. Imagine a ironia se a guerra, tão “importante” para uns, fosse resolvida por um desses personagens? Certamente, se isso tivesse ocorrido, o diretor teria possuído um material ainda melhor para construir seu filme, justificar um distanciamento da problemática e divulgar a sua “arte” para seu grande público “seleto”.

Referências de críticas e entrevistas
http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1328761-7086,00.html
http://www.omelete.com.br/cine/100022604/Critica__Bastardos_Inglorios.aspx
http://portal-cinefilo.com/entrevista-tarantino-fala-sobre-seu-mais-novo-filme-%E2%80%9Cbastardos-inglorios%E2%80%9D/
http://oglobo.globo.com/blogs/arnaldo/

Igor Fernandes

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