terça-feira, 27 de outubro de 2009

Tarantino, o choque e a irreflexão.


Quando se fala sobre um filme sobre a Segunda Guerra Mundial, provavelmente teremos alguns temas como: o cenário do front da guerra, a ideologia nazista, os campos de concentração, o dia D ou a invasão da Polônia, entre alguns outros. Bastardos Inglórios trata disso superficialmente. Este é apenas o pano de fundo para o verdadeiro tema: a violência de um grupo rebelde radical de judeus cometendo violências contra os nazistas em forma de vingança.


E, falando-se de Tarantino, a violência e a crueldade (no sentido de cru e não necessariamente moral) de atos são pratos cheios em cena como entretenimento. Nada tão diferente assim de um Tom e Jerry (famoso desenho animado onde um rato e um gato se batem provocando o riso das crianças e dos adultos), neste sentido exclusivamente, exceto pelo realismo de seus filmes, que cortam a maior parte da ficção e dão voz a uma verossimilhança externa maior. Há que se lembrar que um desenho carrega em si diferenças cruciais na mensagem. Mas, quanto ao filme, sempre há uma crítica aqui ou acolá às “degenerações morais” de alguns de seus personagens, então talvez usar um grande inimigo do imaginário social de todo o mundo – o nazista – resolva o problema. Nada melhor que um nazista para apanhar e sofrer, talvez esta seja a máxima que justifica o filme. O nazista é retratado, inclusive, como um sanguinário mau e perverso (como na cena em que Hitler põe-se a rir demasiadamente com diversos assassinatos). O nazista: o mau encarnado, o alvo perfeito para este filme.


A partir daí, qualquer coisa é possível, então. Em Bastardos Inglórios (como em outros filmes), mas agora mais justificável, a comédia frente à violência é muito forte. Espera-se que se ria, por exemplo, quem presenciar uma cena de Brad Pitt cravando uma faca e gravando uma suástica na testa de seu inimigo judeu, como uma grande cicatriz moral e punitiva, com direito ao sangue jorrando e à carne esfacelando. Afinal o Brad Pitt (não ele, mas seu personagem) era um judeu, bastardo, e inimigo, portanto, daquele que todos são inimigos (ou assim espera-se): o nazista.


Não há nova reflexão sobre a guerra: há uma ficção com toques de comédia e manchas de violência, em um roteiro bem amarrado, belas fotografias, trilha sonora empolgante (ao exemplo de Kill Bill e Pulp Fiction) e condizente com as cenas, uma cena inicial de trazer o coração à boca e diálogos bem construídos principalmente pelo Caçador de Judeus (Christoph Waltz). Mas não uma reflexão. A reflexão fica pelo que falta de reflexão por parte do filme.


A cena inicial de certa maneira reinaugura o inimigo, busca na memória o que provavelmente faria um Caçador de Judeus, traz a angústia, a posterior catarse com a morte e o relembrar de um terror que, se estivesse esquecido, seria relembrado agora.


Bastardos Inglórios se passa na França ocupada. Alguns aspectos de uma vivência cotidiana de uma ocupação nazista são mostrados, mas não é nem o principal nem um ponto grande de reflexão, já que não aprofunda o tema. Como, alias, uma coisa que não fará muito é aprofundar. Afinal, o público deseja uma sensação imediata de catarse em modo de riso ou de agonia liberada num susto ou coisa semelhante; grandes reflexões produzem seres pensantes, tornando o ganho de dinheiro mais difícil (falo aqui de um público ideal para uma indústria cinematográfica). Tampouco se explica ou aprofunda-se o tema da guerra: toma-a como um pressuposto; só precisa relembrá-la e tomá-la como pano de fundo para o entretenimento.


É interessante como a imagem punitivo/vingativa vem à tona pelo que os Bastardos faziam com os nazistas. Tomemos como exemplo a violência destacada acima, com a suástica gravada na testa do nazista. Na antiga Alemanha nazista, houve período em que os Judeus tiveram que andar com uma estrela de Davi em seu braço para serem classificados como tal facilmente. Em um diálogo do personagem de Brad Pitt, Aldo Raine, com um soldado nazista, Aldo pergunta-lhe se o soldado continuará a usar o uniforme nazista. O soldado diz que jamais o utilizará novamente, e Aldo diz que não gosta disto, pois ele gosta de identificar os nazistas só ao olhá-los e então grava a suástica como marca punitiva (da mesma forma que um Judeu ser um Judeu na Alemanha era uma “punição”, pois você estava marcado como “a grande sujeira da humanidade”).


Mas se, por um lado, há violência, dentre outros filmes do diretor, este é um filme muito menos violento. Ao menos em quantidade: em “qualidade” (se tomarmos como qualidade a arte de tornar real ou a de criar o tipo mais bizarro possível de violência) não deixa tanto a dever. Não há, por exemplo, uma cena como a dos vários espadachins contra a protagonista numa luta sanguinária com dezenas de mortes e mutilações; a cena ao final do filme com todas aquelas mortes não é tão chocante quanto esta de Kill Bill. E as cenas chocantes são entrecortadas por tempos muito maiores de diálogos.


Numa época onde a guerra é um tema tão presente, há que se entender que a escolha do tema era perfeita para Tarantino. Mas a abordagem é diferenciada, pois os filmes contemporâneos retratam o front da guerra, cada vez mais “real”, com mais efeitos para torná-la “real”, enquanto Tarantino se encarrega com algo que seria equivalente aos bastidores da guerra, ao que ocorre por trás e teria sido escondido. Por ser ficção, descompromete-se com a veracidade em favor do poder criativo do diretor e dos atores. Ainda sim, o filme faz referências históricas aos acontecimentos, e até mesmo ao sistema de espionagem, que foi tão utilizado à época, a exemplo da Primeira Guerra. Há também um cuidado com a vestimenta e com os costumes e lugares, a ambientalização, mas isto não chega a ser tanta novidade, já que é uma tendência dos próprios filmes históricos (o que não é este caso, pois se trata de invenção em cima de um fato histórico) é crescente desde a década de 1990. A ficção leva a altos patamares o poder de criação, como a catarse final, com a grande vingança de Shoshanna (Melanie Laurent) e um desfecho que a historiografia e a memória social logo destacariam como “não foi assim que ocorreu”.


Em suma, Bastardos Inglórios propõe-se como filme de ficção e entretenimento, e acarreta uma trama bem amarrada e pouco reflexiva, usando a violência e a comédia unidas em uma catarse onde ora destaca-se uma ora outra. Enquanto propõe-se a isto, compreende-se o conteúdo raso e pouco reflexivo, do tema da guerra ser tão pouco desenvolvido, e outras questões consideradas, talvez, irrelevantes. Além disso, a reação do público, ao menos onde me limitei (a sala de cinema que assisti e algumas resenhas lidas na internet – falando de uma maneira mais geral, ou seja, da maioria das reações vistas), foi positiva, o que indica que este tipo de filme teria sido bem sucedido na sua proposta de entretenimento. Esta analise é importante, mas faltam dados de outros lugares para uma média mais geral; a arte é uma produção e uma experimentação, então para avaliá-la precisamos avaliar autor, obra e público, em diferentes ordens, para obter um estudo eficiente. Numa resenha como esta, conto apenas com as fontes citadas e com o sucesso de bilheteria do filme, que indicam para um mesmo resultado: o riso é provocado muitas vezes pela violência ou a satirização dela, ou o medo dela, e este riso foi bem vindo à platéia, o que caracteriza que Tarantino está a par do que o público quer, ou o público soube apreciar a produção ao vê-la.


Mas uma vez que temos filmes que exploram este mesmo lado, não é uma inovação no sentido do método utilizado para o entretenimento. Talvez apenas uma combinação melhor de elementos fez-se destacar (inclusive o próprio nome Tarantino, dá ao filme um capital simbólico muito grande, uma vez que quando você nomeia algo este nome carrega valores de experiências passadas ou experiências contadas por outros – como o estudo dos intelectuais, dos críticos ou a opinião da mídia – que influenciam na experimentação da arte).


*Rafael Zacca Fernandes

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