quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Faroeste na terra nazista

“Era uma vez... numa França ocupada pelos nazistas”. Assim começa um dos filmes mais esperados (e polêmicos) da temporada. Bastardos Inglórios é uma homenagem que o diretor Quentin Tarantino rende a sua arte predileta: o cinema. Atores como Aldo Ray, Hugo Stiglitz e Edwige Fenech tiveram seus nomes utilizados em personagens. Referências a diretores como Hitchcock e John Ford, a produções como O Poderoso Chefão e Era Uma Vez no Oeste são constantes na obra. Além disso, a presença da cultura pop, seja no letreiro para apresentar Stiglitz, o alemão rebelde, ou na música de David Bowie, ícone do rock, não poderia faltar nesta produção, por ser marca constante do diretor em sua filmografia.
Contudo, a característica principal de Bastardos é associar-se mais a um filme de western (sobretudo os italianos dos anos 1960) do que propriamente a um de 2a Guerra. Tal conflito é apenas um pano de fundo para um ambiente, à primeira vista, “tranquilo”, mas extremamente hostil para quem está nele. Grupos antagonistas convivem em um mesmo espaço: a França ocupada pelos alemães. Nesse espaço, histórias de vingança se desenvolvem, seja a da judia cuja família fora assassinada por um oficial alemão, ou do grupo de americanos judeus que buscam apenas infligir aos nazistas “todo o sofrimento proporcionado aos filhos de Abraão”. Vale lembrar que a temática da revanche é elemento central em vários filmes de faroeste, como o anteriormente citado Era Uma Vez no Oeste e Os Imperdoáveis.
Em sua concepção clássica, o “Far West”, como o próprio nome diz, é um oeste “distante”, um lugar imaginado partindo do concreto, que são as campanhas de expansão territorial norte-americana no século XIX. A partir desse imaginário, o “oeste” vira uma lenda, um mito, onde a civilização estadunidense se renovaria; resgataria valores e ideais propostos na colonização do leste durante o século XVII. É nesse contexto de renovação que são trabalhadas as contradições: a natureza e o progresso/cultura, a anarquia e a ordem social vigente, a América e a Europa, o cowboy e o índio... Ou o nazista e o judeu, no caso de Bastardos Inglórios!
Seja daí, talvez, a opção de Tarantino em subverter a História e criar uma fantasia em torno da guerra, ao contrário de um Spielberg, que exorta ao máximo a realidade da guerra. Não são apresentadas longas seqüências de combates, ou um campo de batalha característico, com a fotografia cinzenta e aspectos da destruição por todo lado – traços marcantes da representação belicista em Hollywood. Pelo contrário, há a permanência de uma fotografia com cores vivas e que realça uma França bucólica, charmosa – seja no campo ou na cidade. Os tiroteios são rápidos, e mesmo deixando seus rastros de morte, são menos dramáticos que as cenas de escalpelamento. A batalha em si está nos diálogos, onde os personagens se enfrentam, ameaçam e são ameaçados, realçando um clima hostil, de tensão. Para isso, o coronel Hans Landa, brilhantemente interpretado por Christoph Waltz, mostra-se fundamental: um militar germânico poliglota, que tenta pensar como o inimigo, “entrando na mente do adversário” e aos poucos o encurralando com sua conversa bem elaborada – sutil, mas ao mesmo tempo intimidante – almejando obter êxito em seus objetivos.
Um outro aspecto a ser ressaltado nesta comparação é o fator indígena, que ultimamente tem aparecido no cinema hollywoodiano como alguém enraizado na cultura estadunidense; portador de valores como a coragem, o “espírito guerreiro” e “detentor do respeito às tradições de sua cultura”. Essas características se apresentam no tenente Aldo Raine, personagem de Brad Pitt. Um sulista (o sotaque carregado não deixa mentir) mestiço que carrega o ímpeto desbravador, oriundo dos exploradores brancos do oeste selvagem no século XIX, com a alma guerreira herdada da tribo Apache, sendo exemplo o ato de tirar o escalpo do inimigo, simbolizando a submissão do mesmo.
Raine é um carismático anti-herói: apesar de afirmar sua identidade americana, não é um defensor da lei como os personagens clássicos do John Wayne. Basta observar que é um homem que praticava contrabando de bebidas durante a Lei Seca, e que exalta o fato de não seguir à risca as ordens de seus superiores, além de considerar uma “obra de arte” marcar com sua faca os nazistas. Entretanto, possui um carisma por seu estilo falastrão, irônico, mas bem humorado, com tiradas inesperadas (talvez, isto até o assemelhe ao coronel Landa). Além disso, seu espírito guerreiro e desbravador, realçado por uma cicatriz não explicada no pescoço, reflete um homem cuja guerra está em seu sangue; não manifesta contradições, não é judeu, e sua determinação em matar nazistas é simplesmente por prazer.
Resumindo, a preocupação de Tarantino não é ser 100% fiel à 2a Guerra. Isso, produções como O Resgate do Soldado Ryan e Band of Brothers já buscaram fazer. Aparentemente, sua vontade maior é homenagear o cinema, nem que para isso tenha de contar uma História diferente da que está nos livros. Para isso, enxergou no elemento western a melhor maneira de fazer tal homenagem, por tal estilo legitimar abstrações de um evento concreto, passado. Sendo assim Bastardos Inglórios é um faroeste... Um faroeste na terra nazista!

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